Electronic agents e smart contracts no contexto da Lex Criptographia
A possibilidade de que robôs ou outros agentes eletrônicos possam fazer contratos em nome de pessoas naturais, desde 1° de março de 20191, passou do plano da ficção científica para o plano legislativo, ao menos nas Ilhas de Guernsey, um dos locais do mundo com legislação mais sofisticada para a gestão de ativos financeiros.
O fato de Guernsey ter inserido essa possibilidade em sua já avançada lei de transações eletrônicas, “Electronic Transactions Law2”, é um indício de que a regulação dessas novas possibilidades de realização contratual tende a ser mais um ativo a ser precificado pelos agentes econômicos para realização de investimentos, e mais um fator de competitividade imposto aos Estados.
Dentre as inúmeras implicações para o âmbito jurídico dessa nova legislação, Guernsey inaugura no contexto internacional o reconhecimento de validade jurídica para negócios realizados por meio de smart contracts, devendo-se frisar, todavia, que as implicações para a teoria do direito são muito mais complexas e profundas do que aquelas decorrentes de um mero uso de uma nova tecnologia pelos agentes econômicos.
Com efeito, essa nova legislação de Guernsey faz parte de um fenômeno inserido em um contexto muito mais profundo, ou seja, no contexto daquilo que Klaus Schwab designou como sendo a 4ª revolução industrial, isto é, não apenas um contexto de sistemas e máquinas inteligentes conectadas, mas a fusão de tecnologias disruptivas3 somada “a interação entre os domínios físicos, digitais e biológicos” (SCHWAB, 2016, p.11).
Trata-se certamente de um contexto que suscita muito mais inquietações e incertezas aos pesquisadores do Direito do que otimismo ou pessimismo em face das mudanças que essa nova realidade tende a impor às relações sociais.
O conceito de Lex cryptographia
Os professores Primavera de Filippi e Aaron Wright que em 2018 publicaram o livro Blockchain and the Law, pela Harvard University Press, obtiveram reconhecimento internacional a partir dos resultados de suas pesquisas sobre as relações entre o direito e as chamadas tecnologias disruptivas. Em especial no que tange às relações entre o Direito, blockchain, e smartcontracts, considerou-se que tais relações inauguram o surgimento de um novo ramo do Direito, denominado Lex Cryptografia.
Pelo termo Lex Cryptographia os pesquisadores denotam um conjunto de regras cuja aplicação seria administrada “através de smart contracts auto executáveis e organizações autônomas descentralizadas” (tradução nossa) (DE FILIPPI, P; WRIGHT, A, 2015, p.1) 4, estas comumente referidas na literatura especializada pelo acrônimo DAO (decentralized autonomous organization).
Em outras palavras, a Lex Cryptographia seria um sistema descentralizado de normas capaz de ser lido, interpretado, e aplicado de forma autônoma por algum objeto inteligente, a exemplo de um robô ou outro agente eletrônico.
Nesse sentido, ao discutir as relações entre o direito dos contratos e os smart contracts, o professor Max Raskin da universidade de Nova York faz alusão ao surgimento de uma nova realidade contratual, denotada pelo termo “contractware”. Trata-se de termo utilizado por Raskin de forma técnica com o sentido de “instanciações físicas ou digitais dos termos de um contrato em máquinas ou em outros objetos envolvidos no processo de aplicação das normas contratuais (tradução nossa)” (RASKIN, 2017, p. 307)5
O termo instanciação que faz parte da lógica das linguagens de programação orientadas a objeto, dentre as quais a solidity utilizada para criação de smart contracts é um exemplo, é empregado pelo referido autor, outrossim, de forma técnica, como se referindo ao processo de inscrição e tradução da linguagem contratual em linguagem de máquina:
“Por instanciação nós significamos pegar os termos de um acordo e escrevê-los ou em software previamente existente ou em outro que, de alguma forma, esteja conectado em uma máquina, que ficará responsável pela implementação dos termos contratuais (tradução nossa) (RASKIN, 2017, p. 307)6.
Metaforicamente, poder-se-ia pensar que dois contratantes, após terem assinado o contrato, entregam-no para um terceiro cuja função seria a de observar “o se e o quando” as condições contratuais ocorreriam para que, uma vez constatada a ocorrência, ficar responsável por interpretar e executar o contrato.
A diferença entre o exemplo metafórico e a realidade, no entanto, é que o agente responsável por interpretar e executar os termos contratuais no caso dos smart contracts corresponde àquilo que algumas legislações definem pelo termo agente eletrônico (electronic agent).
Nesse sentido, conforme entendimento da Câmara de Comércio digital (Chamber of Digital Commerce), impende-se diferenciar entre smart contract, que em algumas legislações corresponderia a um agente eletrônico, sem que, entretanto, consubstanciasse algum tipo de relação contratual, e o smart legal contract, que além de desempenhar as funções de um smart contract também consubstanciaria uma relação de caráter contratual.
Para entender melhor a diferença convém apresentar ambas as definições, tal como proposto pela Câmara de Comércio Digital.
Os três critérios para definir um objeto como sendo um smart contract
De acordo com a Câmara de Comércio Digital, para que seja possível falar acerca da existência de um smart contract ao menos três condições devem ser satisfeitas. A primeira é que um smart contract deve ser compreendido como sendo “um código de computador capaz de executar uma ação de forma autônoma a partir de instruções fornecidas por funções pré-especificadas, desde que observada a ocorrência de uma ou várias condições” (CDC, 2018)
A lógica é simples e corresponde aos condicionais das linguagens de programação, “if…, then…”, o que traduzido em linguagem natural significa que se ocorrerem certas condições uma ação pré-especificada deverá ser realizada.
Ademais, de acordo com a Câmara de Comércio Digital, para que seja possível falar acerca da existência de um smart contract deve ser possível armazenar e processar esse código em um registro distribuído, também chamado de livro-razão distribuído (distributed ledger) (CDC, 2018).
Enfim, uma vez armazenado em um distributed ledger, a última condição que precisa ser satisfeita para a existência de um smart contract é que este seja capaz de observar e interpretar qualquer alteração em sistemas internos ou externos que possa vir a ter qualquer influência no conhecimento das condições responsáveis por determinar a ação realizada (CDC, 2018).
Essa ação realizada, por sua vez, pode ser apenas o envio de uma informação para um objeto inteligente inserido em um ecossistema de internet das coisas.
Conforme se observa, as implicações do termo smart contract, conforme especificado pela Câmera de Comércio Digital, podem envolver uma série de instrumentos não necessariamente contratuais, ou seja, trata-se de uma tecnologia que pode ser empregada para a realização dos mais diversos propósitos, não necessariamente lícitos, mesmo que seja por uma única pessoa.
Conclusão
Observou-se que a 4ª revolução industrial é uma realidade com implicações profundas no modo de se conceber o Direito, na medida em que provoca mudança substancial nos fatos sociais e econômicos objeto de regulação jurídica.
Os pesquisadores do Direito, contudo, já estão fornecendo novos conceitos para tratar essa nova realidade, a exemplo do conceito de Lex Criptographia oferecido pela professora Primavera de Filippi em conjunto com o professor Aaron Wright.
Observou-se ainda que o conceito de Lex Criptographia é capaz de abranger tanto o conceito de smart legal contract quanto o conceito de electronic agents, havendo discussão sobre se este termo seria preferível ao termo smart contract.
Neste artigo é proposto que o termo smart contract seja utilizado apenas no caso de consubstanciar uma relação contratual, seja esta jurídica ou não, e o termo eletronic agents nos demais casos.
Enfim, após uma contextualização dos conceitos mencionados com a nova legislação das Ilhas Guernsey foi possível observar que a ideia de robôs fazendo contratos deixou de ser uma mera elocubração científica para fazer parte do Direito.
Referências
Chamber of Digital Commerce. Smart Contracts: Is the Law Ready? White paper. Washington, D.C., Setembro, 2018. Disponível em: https://digitalchamber.org/smart-contracts-paper-press/
CHRISTENSEN, C.M; MICHAEL, E.R; MACDONALD, R. What is disruptive inovation? Harvard Business Review, Cambridge, dez, 2005. Disponível em: https://hbr.org/2015/12/what-is-disruptive-innovation. Acesso em 06/05/2016.
Electronic Transactions (Guernsey) Law, 2000. Disponível em:
http://www.guernseylegalresources.gg/article/94509/Electronic-Transactions-Guernsey-Law-2000. Acesso em 05/03/2019
RASKIN, Max, The Law and Legality of Smart Contracts. Georgetown Law Technology Review, Georgetown, Washington, D.C,v.1, n.2, p. 305-341, 2017.
SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. 1.ed. São Paulo: Edipro, 2016.The Eletronic Transactions (Eletronic Agents) (Guernsey) Ordinance, 2019. Disponível em: https://www.gov.gg/CHttpHandler.ashx?id=117217&p=0. Acesso em: 20 de março de 2019.Wright, Aaron and De Filippi, Primavera, Decentralized Blockchain Technology and the Rise of Lex Cryptographia. Mar, 2015, Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2580664 ou http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2580664. Acesso em 30/09/2018.
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1 Cf. The Eletronic Transactions (Eletronic Agents) (Guernsey) Ordinance, 2019. Disponível em: https://www.gov.gg/CHttpHandler.ashx?id=117217&p=0. Acesso em: 20 de março de 2019.
2 Cf.Electronic Transactions (Guernsey) Law, 2000. Disponível em:
http://www.guernseylegalresources.gg/article/94509/Electronic-Transactions-Guernsey-Law-2000. Acesso em 05/03/2019
3 Em que pese seja comum falar em tecnologias disruptivas, na teoria da administração o termo disrupção é utilizado para “ descrever um processo por meio do qual uma companhia pequena com poucos recursos é capaz de desafiar com sucesso negócios bem estabelecidos” Nesse sentido, “ o termo inovação disruptiva é enganoso quando usado para fazer referência a um produto ou serviço em um ponto fixo, mais do que à evolução daquele produto ao longo do tempo” CHRISTENSEN, C.M; MICHAEL, E.R; MACDONALD, R. What is disruptive inovation? Harvard Business Review, Cambridge, dez, 2005. Disponível em: https://hbr.org/2015/12/what-is-disruptive-innovation. Acesso em 06/05/2016.
4 “through self-executing smart contracts and decentralized (autonomous) organizations”.
5 “physical or digital instantiations of contract terms onto machines or other property involved in the performance of the contract.” RASKIN, Max, The Law and Legality of Smart Contracts. Georgetown Law Technology Review,Georgetown, Washington, D.C,v.1, n.2, p. 305-341, 2017.
6 “By instantiation, we mean taking the terms of the agrément and either writing them into previously existing software or writing them into software that is connected in some way to a machine that implements the contract”
Autores
FERNANDO DOS SANTOS LOPES – Advogado chefe da área de compliance de corretora internacional de criptoativos. Extensão em Fintech Law and Policy pela Duke University School of Law, e em Fintechs pela Copenhagen Business School. Especialista em Direito Penal e Criminologia e mestrando em Direito Empresarial. Sócio Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico IBDPE. Integrante da equipe de advogados do escritório Robson Galvão http://robsongalvao.adv.br/. fernando@robsongalvao.adv.br
ADRIANA SILIPRANDI – Sócia diretora da sociedade empresarial Exo Global, empreendedora no mercado de criptoativos com foco na inovação através da tecnologia Blockchain. Administradora com MBA em Gestão de Negócios pelo Insper, CBA em gestão de negócios pelo Ibmec, e Gestão de Pessoas pelo Unicuritiba. Coautora do livro Manual do Crescimento, especialista em Marketing, Coaching e Coaching Financeiro pelo ICF. Graduanda em direito pela Universidade Tuiuti.
Fonte: JOTA