Mercado aguarda há sete anos definição do STF sobre poder do Fisco de cassar registro de empresas
A decisão sobre a possibilidade de o governo tirar do mercado empresas de setores regulados que deixam reiteradamente de pagar tributos está nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF). Apesar de a Corte ter precedente favorável ao poder dado à Receita Federal por um decreto de 1977, é no julgamento da ADI 3952 que os ministros baterão o martelo definitivamente sobre um tema que preocupa empresas, especialmente do ponto de vista da concorrência.
O julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade começou em 2010 com o voto do relator, o então ministro Joaquim Barbosa. Mas, há sete anos, o mercado aguarda a retomada da análise da ação com o voto-vista da ministra Cármen Lúcia, atual presidente do Supremo.
Os ministros foram chamados a definir se o inciso II do artigo 2ª do Decreto-Lei 1.593, de 1977, é constitucional. O dispositivo exclui do mercado as empresas inadimplentes com a Receita Federal. Esse mesmo decreto impõe ser obrigatória a autorização do órgão para a produção de cigarros – o que se denominada como registro especial de funcionamento.
A suspensão do registro se dá contra as empresas que são devedoras contumazes, ou seja, que reiteradamente não pagam os tributos. Sem o registro, elas ficam impedidas de funcionar.
De acordo com a Fazenda Nacional, 13 indústrias foram fechadas nos últimos anos por não pagar impostos de forma reiterada. Juntas elas devem cerca de R$ 18 milhões aos cofres públicos.
Conceito
O JOTA expôs em reportagem de maio que o conceito de devedor contumaz é nebuloso. Cada Estado fixa na legislação local o que é um devedor contumaz, autorizando o fisco estadual a empreender um regime especial de fiscalização e pagamento contra esse contribuinte. A União também não prevê uma diferenciação clara na legislação entre o devedor contumaz e o devedor eventual, aquele que deixa de pagar impostos por dificuldades financeiras.
Para advogados, dificilmente o Supremo conceituará a expressão “devedor contumaz” no julgamento da ADI. Mas os ministros podem definir alguns padrões para guiar o Judiciário e o próprio legislador, no caso de reprodução da legislação do cigarro a outros setores.
“Por se tratar de uma ação em controle abstrato, é difícil que seja apresentada uma definição fechada do conceito de devedor contumaz”, afirma Marcelo Ludolf, sócio do Escritório Basílio Advogados e advogado do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO).
De acordo com o advogado, os padrões devem versar sobre a necessidade de demonstração pelo fisco de reiterado inadimplemento ao longo do tempo; a expressividade da dívida frente ao porte da empresa e a imprescindibilidade do devido processo legal.
“Caso se confirme a improcedência da ADI 3952, será uma excelente sinalização do Judiciário aos sonegadores de que a porta da inadimplência contumaz será fechada. Isso poderá atrair mais investimentos, que hoje estão represados justamente por aqueles que não podem competir com quem pratica a macrodeliquência tributária”, afirma o presidente-executivo do ETCO, Edson Vismona.
Livre iniciativa e limites ao poder
As decisões dos juízes costumam ser favoráveis à Receita Federal, porém existe um debate sobre a constitucionalidade do poder do órgão de cassar o registro de funcionamento de empresa por inadimplência de tributos.
Para advogados, permitir que a cassação seja realizada diretamente pela Receita Federal pode implicar num excesso de poder pelo órgão do Executivo.
“Isso é matéria de legislação complementar, seria necessária uma emenda constitucional para se deliberar sobre o cancelamento”, afirma o advogado José Del Chiaro, especializado em questões antitruste e de concorrência.
“Fechar uma empresa, sem a definição precisa na Constituição e o duplo chancelamento dessa decisão pelo Poder Judiciário, é instaurar o fim da liberdade de iniciativa e fomento ao compadrio” afirma o advogado, sócio do escritório que leva seu nome.
O risco seria que esse excesso de poder se torne um instrumento de poder político por parte da fiscalização, pois não teria o devido processo legal antes de tal decisão. “Com excesso de poder para um agente do Executivo é possível que ele cometa um ato ou faça uma prática de tributação em caráter de fechar uma empresa, atribuição que não deve ter. Do ponto de vista concorrencial, isso pode beneficiar concorrentes que estão incomodados com essa empresa”, conclui o advogado.
O rombo tributário
A comercialização de cigarros possui diversas restrições por parte da Receita Federal, que também são aplicadas para empresas de bebidas, papel imune e biodiesel.
“A carga tributária de cunho extrafiscal (IPI e ICMS) tem importância fundamental para a inibição do consumo de cigarro pela população, uma vez que se trata de uma atividade nociva a saúde e apenas tolerada pelo Estado mediante o pagamento de tributos”, explica Cláudio Seefelder, Subprocurador Geral da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.
Impedir as empresas devedoras contumazes de exercer atividade pode ser danoso à sociedade, pela perda de empregos e impossibilidade de se pagar o débito. Porém, nos casos como o da American Virginia, que devia mais de R$ 4 bilhões , pode-se perceber que a dívida jamais seria paga — o que também gera um custo alto para os cofres públicos.
“Os cigarros têm carga tributária avaliada em 80,42%. Com a sonegação, as empresas formais são diretamente afetadas, elas perdem a capacidade de competição e são forçadas a cortar empregos e investimentos importantes para o desenvolvimento da indústria nacional”, declara Vismona.
A fiscalização se utiliza do sistema SCORPIOS para controlar a produção de cigarros. Por meio desse sistema, a Receita é capaz de verificar a quantidade produzida e, assim, ter uma base de dados para confrontar com as declarações apresentadas pelas fabricantes. “A partir desse cruzamento de informações, a Receita consegue mapear a sonegação nesses setores de forma bastante célere. Acontece que há longo caminho até o efetivo cancelamento do registro de produção ”, explica o presidente do ETCO.
Segundo Ludolf, a morosidade da Justiça é apenas uma de diversas maneiras que uma empresa de má fé tem para burlar o sistema tributário.
“A utilização de inúmeros artifícios para postergar ao máximo o pagamento de tributos, utilização de laranjas como formalmente sócios das empresas; oferecimento de créditos podres, adesão à inúmeros parcelamentos sem o efetivo pagamento, utilização de tentativas de compensação indevidas, transferência de maquinário e pessoal a outras empresas para perpetuação da prática, são apenas alguns exemplos”, elenca o advogado.
Parâmetros
O julgamento da ADI pendente de conclusão no Supremo conta apenas com um voto, do ministro aposentado Joaquim Barbosa. No início da análise da ação, em outubro de 2010, Barbosa condicionou o cancelamento do registro especial ao atendimento de três requisitos: a relevância do valor do débito e o devido processo legal para que a empresa possa recorrer da punição e também da cobrança dos impostos.
Em 2001, o governo alterou o decreto de 77 por meio da Medida Provisória 2152-35. Com isso, passou a prever que os fabricantes sejam intimados de sua situação fiscal e possam recorrer do cancelamento do registro especial.
Em 2013, três anos depois do início do julgamento da ADI, o Supremo analisou o RE 550.769, que envolveu a American Virginia Indústria Comércio Importação. Segundo a Receita, a empresa deve mais de R$ 4 bilhões aos cofres públicos.
Na ocasião, a maioria dos ministros seguiu o voto de Barbosa, que reforçou sua posição sobre a constitucionalidade da cassação do registro especial, desde que observados os três requisitos.
O ministro Ricardo Lewandowski, por exemplo, afirmou, no julgamento de 2013, que a cassação do registro não seria uma espécie de sanção política para forçar o contribuinte a pagar o tributo. “A meu juízo, o entendimento no sentido da inconstitucionalidade das sanções políticas não contempla o desrespeito reiterado à legislação tributária”, disse, na ocasião.
Os ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello ficaram vencidos. Entenderam que o fechamento da empresa seria uma espécie de sanção política.
“Trata-se de medida desproporcional e em frontal descompasso com os princípios constitucionais da livre iniciativa e do devido processo legal”, afirmou Mendes, acrescentando que os efeitos da sonegação na concorrência não justificariam a medida.
A ministra Cármen Lúcia não participou do julgamento da American Virginia. Mas, ao pedir vista na ADI 3952, afirmou que dar interpretação em conformidade com a Constituição em cada caso concreto “seria entregar ao administrador fazendário a aplicação da Constituição ou não”.
Giovanna Ghersel – Brasilia
Fonte: Portal Jota