Em 28 de março deste ano o Jota publicou artigo em que introduzo o conceito de advocacia da concorrência. Ali, tento explicar que a função fundamental daquele que faz advocacia da concorrência é oferecer informação de qualidade acerca dos efeitos que determinadas decisões podem ter sobre o bem-estar da sociedade.
As atividades de promoção da concorrência dirigem-se a três públicos-alvos: governo, sociedade civil e negócios. A forma mais usual de alcançar o primeiro público é por meio de um órgão público que tenha bom trânsito dentro do governo. Esse é o caso da Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae) do Ministério da Fazenda, cujos pareceres são levados em consideração quando algum normativo, ou política pública possa ter efeitos sobre a concorrência.
A atuação da Seae, isoladamente, ou em parceria com outras instituições, levou a importantes resultados ao longo dos seus quase vinte e cinco anos de existência. Para citar apenas alguns efeitos recentes do contínuo trabalho de advocacia da concorrência da Seae, (i) o seu trabalho conjunto com o Banco Central do Brasil e com a extinta Secretaria de Direito Econômico (SDE) do Ministério da Justiça levou a que as credenciadoras de cartão de crédito passassem a oferecer ao consumidor a possibilidade de usar diferentes bandeiras para pagar as suas compras com cartão de crédito; (ii) o seu parecer sobre o papel da entrada do Über no mercado de transporte individual de passageiros foi central para denunciar o rentismo dos serviços de táxi e para que o Executivo federal, o Ministério Público Federal e o Poder Judiciário entendessem a relevância dos aplicativos de carona para o bem-estar social; (iii) documento de trabalho de dezembro de 2006[1] introduziu a discussão no Brasil acerca da neutralidade de rede, que veio a ser consolidada pelo marco civil da internet; (iv) o seu parecer e reunião do seu dirigente com a então presidente da República evitaram que o marco civil da internet elevasse os custos de entrada no mercado de aplicativos no Brasil, por meio da obrigatoriedade de instalação de data centers no país; (v) pareceres e discussões interministeriais conduziram à redução de exigências de patrimônio líquido mínimo e experiência prévia, assim como de barreiras documentais e de prazo para a participação de concorrentes estrangeiros em contratos de concessão; (vi) documento de trabalho de dezembro de 2006[2] tornou-se paradigma para a proposta de criação de um mercado secundário de espectro no Brasil, incluída no novo marco regulatório de telecomunicações; (vii) os seus pareceres de análise de regras regulatórias, em conjunto com o Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação — Pro-Reg, desencadearam a paulatina adoção da análise de impacto regulatório pelas agências reguladoras e a sua inclusão no projeto de lei das agências reguladoras; (viii) a sua atuação intraministerial tem permitido preservar o papel do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência na análise de condutas e atos de concentração envolvendo o setor financeiro.
Com o lançamento do Programa Nacional de Promoção da Concorrência (PNPC) — cujas cartilhas foram disponibilizadas aqui no Jota -, a Seae ainda passa a ter um importante papel de difundir a concorrência, por ensino à distância (EaD), a órgãos federais e estaduais dos três poderes e do Ministério Público. A estratégia do PNPC, ao prestigiar o EaD, facilita o monitoramento do acesso aos materiais didáticos e do aproveitamento do usuário, além de reduzir os custos da capilarização. Finalmente, o trabalho da Seae como promotora da concorrência é reconhecido e usado amiúde como insumo para os trabalhos do Ministério Público Federal e do Tribunal de Contas da União.
Mas a advocacia da concorrência junto ao setor público pode e deve ser realizada por entes privados, em uma economia concorrencialmente madura. No Brasil, esse foi o caso paradigmático do livro Advocacia da Concorrência – propostas com base nas experiências brasileira e internacional, lançado em 2016 pelo Comitê de Regulação do Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (Ibrac). O livro instigou o recente pedido – deferido pelo Judiciário de Santa Catarina – de ingresso da Seae como amicus curae em processo referente a restrições para a exploração do comércio de alimentos e bebidas nas praias de Florianópolis.
Além da advocacia da concorrência junto ao setor público, é desejável promover a competição junto aos negócios, com o objetivo de criar, em cada setor da economia, consciência de qual comportamento empresarial deve ser visto com cautela. Assim como, no setor público, a Seae tem desempenhado um papel destacado em criar e manter uma cultura de avaliação dos efeitos anticompetitivos dos atos administrativos e normativos, a advocacia da concorrência junto ao empresariado visa incentivar o surgimento de inciativas do próprio empresariado voltadas para criar mercados concorrencialmente saudáveis. Exemplos de ações nessa seara são cartilhas de melhores práticas — como as que foram publicadas pela extinta SDE e as que ainda vêm sendo publicadas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) — e palestras temáticas organizadas pelo governo, por setores industriais e por instituições acadêmicas. Eu incluiria, também, o uso dos compromissos de cessação (voluntariamente) assinados com o Cade, com o objetivo de difundir melhores práticas nos mercados.
Aqui, o papel mais relevante para manter viva a rivalidade entre negócios advém do próprio mercado, por meio de programas de compliance – que nada mais são que a autorregulação dos mercados com o objetivo de instruir, fiscalizar e premiar comportamentos pró-competitivos dentro de cada negócio, ou no setor como um todo. Não se pode ignorar, porém, o efeito indireto que a coerção exercida pelo Cade (enforcement decorrente da percepção de que práticas lesivas à concorrência são punidas no Brasil) tem como incentivo a que o mercado aja dentro da lei e adote rígidos programas de compliance. Crê-se que mercados nos quais os agentes econômicos já tenham sido expostos a programas de compliance estejam menos sujeitos a condutas anticompetitivas, em particular as concertadas; por outro lado, ilícitos praticados de forma consciente por agentes econômicos reincidentes, ou que já tenham sido expostos aos benefícios de seguir a lei devem ser punidos com maior vigor, pois a persistência é sinal de que o proveito que tiram da infração supera a punição a que estão sujeitos os agentes econômicos mais avessos ao risco.
Por fim, a promoção da concorrência junto à sociedade civil é o passo mais complicado, pois envolve tanto a capilarização da política de instrução da sociedade civil (visando alcançar a maior quantidade possível de pessoas), quanto a conscientização de cidadãos com pouca, ou nenhuma instrução acerca dos benefícios, para o seu bolso, do engajamento em medidas de detecção, denúncia e punição de condutas anticompetitivas. Por outro lado, é essa medida de promoção da concorrência que pode ter os efeitos mais relevantes sobre a dissuasão das práticas anticompetitivas: quanto maior a ameaça de ações individuais, ou coletivas de reparação de danos (a essas ações em conjunto denominamos enforcement privado), maior a probabilidade de detecção e menores os payoffs e incentivos para o cometimento do ilícito. A advocacia da concorrência, nessa esfera, ganhou corpo, no Brasil com a ação da extinta SDE de elaborar e distribuir de cartilhas e gibis, além de realizar seminários, em paralelo aos esforços da Seae em financiar prêmios de monografias. Hoje, a advocacia da concorrência junto à sociedade civil é realizada somente pela Seae e ainda caminha no sentido de fornecer a estudantes acesso a materiais didáticos (também por meio do PNPC).
Apesar das diferenças culturais e dos diferentes graus de evolução institucional, parece-me correto afirmar que as duas primeiras formas de advocacia da concorrência são comuns em sistemas legais com políticas antitrustes bem sucedidas. Ainda há, porém, ressalvas em relação aos efeitos da advocacia da concorrência junto à sociedade civil (terceiro gênero da advocacia da concorrência), em particular fora da cultura anglo-saxã, por se tratar de regiões em que a valorização da competição não está disseminada em todos os níveis da vida pessoal e a cultura do dedo-duro (whistleblowing) causa espécie.
Além de a diversidade cultural afetar a capacidade de absorção dos ensinamentos, a capacidade de atomizar o alcance da política pública de promoção da concorrência — que envolve, em certo grau, conhecer a curva de indiferença do público-alvo e conferir prioridade de dispêndio de recursos a essa finalidade — e a habilidade de monitorar o grau de efetividade da política — que visa otimizar o dispêndio de recursos públicos — consistem em importantes obstáculos ao desenvolvimento dessa linha de advocacia da concorrência. Esses obstáculos são maximizados em função de uma característica marcante da advocacia da concorrência: a ausência de coerção. Em outras palavras, não é possível simplesmente exigir que todos se instruam e se convençam da relevância da concorrência para a elevação do bem-estar social.
É possível, porém, reduzir esses obstáculos por meio de ações já citadas neste artigo. Primeiro, é factível incluir ações de advocacia da concorrência dentro do escopo mais amplo de acordos a que os agentes econômicos voluntariamente se obriguem (caso dos compromissos de cessação do Cade, de que é exemplo o acordo costurado no âmbito do Processo Administrativo n.º 08012.007238/2006-32), ou de grades horárias de cursos universitários (como foi a bem sucedida implantação da análise econômica do direito nos Estados Unidos por meio do John Olin Program, algo que a Seae tenta replicar para o direito da concorrência com o PNPC). Segundo, é possível disponibilizar materiais didáticos na rede (online), fomentando cursos à distância, ou a capacitação de professores que possam ministrar aulas presenciais aos seus alunos. Terceiro, é possível exigir a prestação de contas em TCCs e, nos cursos universitários, supervisionar resultados por meio do desempenho acadêmicos e de taxas de adesão. Essa é uma estratégia que a Seae está testando com relação à oferta de ensino à distância a servidores públicos de todo o país.
Apesar de profundo, o grande desafio para a consolidação de uma sociedade concorrencialmente madura não está em pensar o presente, mas em compreender qual será o papel da advocacia da concorrência no futuro próximo. De fato, o grande desafio da advocacia da concorrência está em saber qual o papel da promoção da concorrência na economia datacêntrica.
Datacentrismo é o nome que se tem dado a essa fase da economia digital em que, acredita-se, o acesso aos bancos de dados (big data) será o insumo essencial para competir. O datacentrismo revoluciona a forma com que vemos a concorrência efetiva: quanto maior o acúmulo de dados, maior a facilidade para escrever um algoritmo capaz de (com base na experiência pregressa e em dados estatísticos) conhecer a utilidade de um bem para um usuário, oferecer o produto por ele desejado, definir prioridades entre clientes, prever comportamentos e evoluir sem a intervenção humana (deep machine learning). E a cereja do bolo reside, justamente, em que, como o acúmulo de conhecimento gera produtos melhores[3] — algo que leva a que a utilidade do serviço esteja diretamente atrelada à quantidade usuários da plataforma alimentando informações que serão úteis para a experiência de todos -, estamos diante de economias de rede, as quais criam um ambiente fértil para a monopolização. O poder de mercado de um negócio torna-se ainda mais preocupante quando à economia de rede soma-se a relevância da acumulação de dados ao longo dos anos (big data), em uma espiral de dependência do passado (path dependence).
O acesso oligopolizado, ou monopolizado à informação cria incentivos a que ela seja filtrada de acordo com os interesses econômicos do detentor do acesso, direcionando o usuário para o consumo do bem que ele, caso tivesse pleno acesso à informação, não escolheria. Como o filtro do detentor da informação decide quem prosperará e quem não prosperará no mercado, o mercado fica mais concentrado e as opções do usuário são limitadas às escolhas da plataforma. Por fim, o filtro leva a que a plataforma seja povoada apenas por quem com ela coopere, o que afasta o acesso de quem possa ameaçar o seu poder de mercado.
Uma palavra resume, com propriedade, o objetivo central da advocacia da concorrência na economia digital: portabilidade. Uma vez mais, o papel do promotor da concorrência será informar o consumidor, para que, ciente do gargalo de acesso à informação, ajude a criar incentivos suficientes para que o detentor dos dados reputados insumos essenciais sinta-se instigado a compartilhá-las com os competidores. A forma mais clara de fazer isso seria incentivar a sociedade civil a criar os seus próprios instrumentos de avaliação (rating) do grau de abertura da plataforma — de forma ainda mais consistente do que hoje já se faz com relação à qualidade da proteção dos dados pessoais pelas plataformas. Em paralelo, caberá ao promotor da concorrência conscientizar o regulador e a autoridade de enforcement no antitruste sobre a relevância de exigir-se o compartilhamento de informações acerca do usuário.
Se o modelo de compartilhamento de dados pessoais torna-se ponte para um mercado competitivo e garantidor de outros valores até mesmo mais relevantes — como pluralidade de opinião, privacidade e liberdade de escolha -, é importante resguardar o mercado de intervenção excessiva. Nesse sentido, a advocacia da concorrência, em paralelo, não deve descuidar de ajudar o Legislativo a fomentar uma regulação de incentivos e a afastar-se de normas rígidas e pesadas que ameacem a inovação schumpeteriana, que eleva o bem-estar social.
[1] De autoria de Marcelo de Matos Ramos.
[2] De autoria de Marcelo Sá Leitão Fiuza Lima e de Marcelo de Matos Ramos.
[3] Caso do buscador, do tradutor e da sua assistente pessoal Cortana da Alphabet, além de ser, em potencial, o caso do navegador Waze desse mesmo grupo.
Autor: Roberto D. Taufick – Mestre em Direito, Ciência e Tecnologia pela Stanford Law School. Gregory Terrill Cox Summer Research Fellow, John Olin Program in Law and Economics, Stanford University
Publicado originalmente por Portal Jota